quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Sugestão da Semana EΛ GRECCO

Ruy Belo de Moraes é o autor que sugerimos para esta semana.

Fica aqui um excerto de "Muriel"

"Às vezes se te lembras procurava-te, retinha-te esgotava-te e se te não te perdia era só por haver-te já perdido ao encontrar-te.

Nada no fundo tinha que dizer-te e para ver-te verdadeiramente e na tua visão me comprazer indispensável era evitar ter-te.
Era tudo tão simples quando te esperava, tão disponível como então eu estava, mas hoje há os papéis, há as voltas a dar, há gente à minha volta, há a gravata …
Misturei muitas coisas com a tua imagem, tu és a mesma mas nem imaginas como mudou aquele que te esperava.

Tu sabes como era se soubesses como é, numa vida tão curta mudei tanto que é com certo espanto que no espelho da manhã, distraído, diviso a cara que me resta, depois de tudo quanto o tempo me levou.

Eu tinha uma cidade … havia as ruas, as pessoas, o anonimato, os bares, os cinemas, os museus. Um dia vi-te e desde então essa “cidade” se porventura tem ainda para mim sentido, é ser a solidão que te rodeia a ti, mas o preço que pago por te ter, é ter-te apenas quanto poder ver-te e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te.
Sou muito pobre tenho só por mim no meio destas ruas e do pão e dos jornais este sol de Janeiro e alguns amigos mais. Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo, pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te.

Eu aprendi a viver na minha infância, vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos, e penso que se Bach hoje nascesse em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior teria concebido aqueles sweet hunters …

Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem e penso que se nunca a bem dizer te vejo, se fosse além de ver-te sem remédio te perdia, mas eu dizia que te via aqui e acolá e quando te não via dependia do momento marcado para ver-te.

Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te e antes de chegares já lá estavas naquele preciso sítio combinado onde sempre chegavas, sempre tarde ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses se ausente mais presente pela expectativa, por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente. Mas sabia e sei que um dia não virás, que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste, ou até se exististe ou se eu mesmo existi, pois na dúvida tenho a única certeza:
T
erá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não, na melhor das hipóteses estou longe, qualquer de nós terá talvez morrido. No fundo quem nos visse àquela hora, à saída do metro de serrano sensivelmente em frente daquele bar poderia pensar que éramos reais, pontos materiais de referência, como as árvores ou os candeeiros.

Talvez pensasse que naqueles encontros em que talvez no fundo procurássemos o encontro profundo com nós mesmos, haveria entre nós um verdadeiro encontro como o que apenas temos nos encontros que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes.

Isso era por exemplo o que me acontecia quando há anos nas manhãs de Roma entre os pinheiros ainda indecisos do meu perdido parque de villa borghese, eu via essa mulher e esse homem, que naqueles encontros pontuais decerto não seriam tão felizes como neles eu pois a felicidade para nós possível é sempre a que sonhamos que há nos outros.

Até que certo dia não sei bem, ou não passei por lá ou eles não foram nunca mais foram nunca mais passei por lá; Passamos como tudo sem remédio passa e um dia decerto mesmo duvidamos dia não tão distante como nós pensamos se estivemos ali se Madrid existiu.
Se portanto chegares tu primeiro porventura alguma vez daqui a alguns anos junto de Califórnia vinte e um que não te admires se olhares e me não vires, estarei longe talvez tenha envelhecido, terei até talvez mesmo morrido. Não te deixes ficar sequer à minha espera, não telefones não marques o número, ele terá mudado, a casa será outra …
Nada penses ou faças vai-te embora, tu serás nessa altura jovem como agora, tu serás sempre a mesma fresca jovem pura que alaga de luz todos os olhos, que exibe o sossego dos antigos templos e que resiste ao tempo como a pedra que vê passar os dias um por um, que contempla a sucessão da escuridão e luz e assiste ao assalto pelo sol daquele poder que pertencia à lua, que transfigura em luxo o próprio lixo que tão de leve vive que nem dão por ela, as parcas implacáveis para os outros, que embora tudo mude nunca muda, ou se mudar que se não lembre de morrer ou que enfim morra mas que não me desiluda.
Dizia que ao chegar se olhares e me não vires, nada penses ou faças vai-te embora. Eu não te faço falta e não tem sentido esperares por quem talvez tenha morrido ou nem sequer tenha existido."

in Poemas de Amor Antologia de poesia portuguesaOrganização e Prefácio de Inês PedrosaPublicações Dom Quixote

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